ATC É PREMIADO NO CONCURSO DE LITERATURA DA FENACLUBES

Destaque foi entregue durante o Congresso Brasileiro de Clubes

O Avenida Tênis Clube recebeu neste final de semana a premiação de destaque no Concurso de Literatura dos Clubes, promovido pela Fenaclubes. A entrega do troféu foi feita durante o Congresso Brasileiro de Clubes, realizado de 1º a 4 de novembro, no Hotel Windsor Oceânico, no Rio de Janeiro/RJ. A distinção deu-se na categoria Conto, com a obra “O Lobisomem do angico”, escrita pelo associado Antônio Augusto Maioli.

O presidente do ATC, Marcelo Portella, representou o Clube das Raquetes de Santa Maria no evento. Ele recebeu o troféu do presidente da Fenaclubes, Arialdo Boscolo e do presidente do Sindi Clube de São Paulo, Paulo Movizzo. As duas entidades são parceiras na realização do Congresso.

Confira a íntegra da obra:

O LOBISOMEM DO ANGICO

Por Antonio Augusto de Almeida Maioli – 12.896

I – A chegada

Dos três irmãos, João, o mais velho, sempre fora o mais afeito, e que mais tinha gosto, pela pescaria e pela caçada. Já o Zeca, o mais novo, embora fossem do seu gosto as lidas campeiras, faltava a paciência que se exige do pescador e do caçador de espera; caçada, com ele, só se fosse de busca. E o Rico, do meio, no dizer do Capitão Rodrigo Cambará, que fazia de seu lema – sempre dizia que “qualquer prazer me diverte”.

Pois assim foram saindo das grotas em que se criaram, e eis que de repente abriram caminho para a universidade e – adeus! – aos tempos da roça. Agora, eram caipiras emigrados. Mas, escutem, o caipira sai da roça, porém a roça nunca sai do caipira.

Mas digressões à parte, o João, de vereda, arrumou uma namorada, cuja família se afazendava em São Pedro do Sul, a curta distância do Passo do Angico; lugar que hoje pertence ao município de Toropi. Uma italianada buenaça, amiga das cantorias, do vinho e do trabalho duro. E como bons italianos, sempre fizeram questão de exercer sua hospitalidade, em qualquer ocasião, recebendo os irmãos para a farra domingueira ou para uma mão extra em algum serviço mais complicado.

Pois naquela sexta-feira, o calor em Santa Maria era de abombar cavalo; ir a São Pedro era boa ideia, pois tinha o refresco do rio Toropi no Passo do Angico, e com tempo ainda se podia pescar e até ir atrás de algum capincho nas barrancas.

De chegada, o velho Belame já mandou trazer cerveja e uns comes, arrumou a rapaziada na sede e na prosa de fim de tarde, no terreiro do galpão, o João já provocava:

– Sogro véio, estamos na intenção de pegar alguma capivara lá no Toropi, que lhe parece?

Instantaneamente o velho mostrou seu semblante anuviado, como que perdendo a graça, foi desconversando:

– Pos óia, hoje é lua cheia. Vão perder tempo, não se pega nem gripe. Nesse clarão, a caça se esconde muito.

Mas a sede era muita, insistiu; já que estamos aqui, tentar não custa, e se não se achar nada, também só perdemos o sono. Nessa hora que o gringo clareou o assunto:

– Vocês com certeza vão querer rir de mim, não acreditam, mas hoje é dia de lobisomem; eu mesmo já fui corrido desse maldito, não quero ceca com essa raça. Ir hoje de noite pro rio é buscar enrosco que não se precisa.

Foi aquela risada geral, o velho muito contrariado… Foi lá dentro, voltou com uma coisa na mão:

– Trouxeram 38? Já que querem arrumar sarna, levem isso aqui, pro caso de necessidade.

Era um punhado de munição, com projéteis meio diferentes; metal claro, como se fossem feitos no dia. Mas o gringo logo esclareceu que eram “balas de prata”, temperadas na água benta, e que aquilo no couro de um lobisomem era tiro-e-queda.

Quiseram ainda mangar do velho; ele enfiou a munição no bolso da camisa do Zeca, que sabia bem ser o mais habilidoso com o revólver. Leva, leva, se não precisar já guarda pra ti.

Meio contrariado, se foi para a sede, não sem antes deixar um peão ordenado de arrumar uns cavalos para os “caçadores” irem ao rio.

O Passo do Angico, naquele tempo, embora já fosse popular, era um balneário de rio que em finais de semana chamava algum povo, mas, de regra, na noite, ficava deserto; acampar por ali, não era tão comum. O mais marcante do lugar é um pontilhão de concreto assentado sobre o lajedo do fundo do rio, de modo que, quando o rio sobe, fica submerso; mas dá passagem a maior parte do ano. A montante, uma corredeira larga e rasa dá passagem a um desnível do rio, e mais acima, um largo remansose abre, já a uma distância considerável do pontilhão; ali é que vez por outra se via algum capincho.

Dada a janta, pegaram os cavalos – o peão não quis acompanhar; e se botaram no estradão, para vencer não mais que uns três quilômetros ao lugar da caçada. A lua cheia era esplêndida, fazendo marcar a sombra dos cavaleiros na estrada de terra.

II – A convergência

Pois como já dissera, o caipira sai da roça, mas a roça não sai do caipira. Não se perde uma oportunidade para enfiar os pés na terra, qualquer ocasião para uma pescaria, uma caçada, uma lida é sempre aproveitada; e não por acaso, há um magnetismo que une os semelhantes nesse mister.

Também acontece que o caipira amansado de sela, em certo ponto de sua vida, acaba ocupando um certo limbo – para a gente do interior, é um cola-fina; para a gente da cidade, é um grosso. Mais depois, de certa maneira, é ambos e nenhum. Sua alma sabe do que gosta, as maneiras e a ciência se somam e o resultado é um híbrido que transita dos pisos alfombrados dos gabinetes aos pelegos dos galpões.

A peonada da fazenda primeiro guarda uma distância respeitosa dos “doutores”, mas logo que os vê em mangas de camisa, pés descalços, mateando no galpão entre talagaços de pinga e nacos de churrasco, já se achegam na prosa, e em seguida já os tratam por “tu”. Mesmo assim, o instinto nega seguimento, quando a proposta é empreitada que as velhas tradições e crendices desrecomendam. Dessa feita, os manos iam a campo só em família.

Na chegada ao Angico, a lua já ia no rumo do zênite, clareando a rampa cortada na barranca por colonos ancestrais que ali acharam o vau para cruzar o rio. Logo à direita do pontilhão, um pequeno poço era indicado para deixar os cavalos no jeito, atados nos galhos baixos de um salgueiro.

O rio estava valente; não cheio, de sair da caixa, mas já botava bem uns 4 dedos de água por cima do pontilhão. Com um palmo de água por cima do concreto, passar ali já era bobagem… mais um motivo para aproveitar a ocasião, pois no sábado ou domingo, quem sabe se choveria?

João era prático e conhecia o sítio, de modo que logo propôs que se dividissem para cercar a caça na batida. Dois subiriam vadeando até o remanso mais acima, e um, pelo corredor que circundava o mato ciliar no outro lado do rio. Lá na área do poço fundo, pegariam o caíque de lata que ficava amarrado na margem oposta e iriam facheando a margem; se o bicho escapasse pelo mato, barranca acima, o parceiro a pé liquidava a fatura, no limpo do corredor.

Zeca logo refugou a empreitada de ir pelo rio; Rico deu de ombros e já foi entrando n’água; João secundou, levando a carabina .22 acima da cabeça.

Zeca observou os manos vadeando corredeira acima, e quando achou que já iam longe o suficiente, embarafustou pelo corredor alumiado pelo clarão. Conferiu o revólver, um Rossi novinho em folha comprado na loja que ficava em um subsolo no Calçadão, e usou a vista acostumada à pouca luz para vigiar a estreita nesga de terra que separava a lavoura do mato. Ali, o rio distava coisa de entre 30 e 50 metros, pois nessas zonas de plantação só se salva, de mato, o mínimo.

Levava ainda uma lanterna forte, para o caso de encandear algum bicho.

Enquanto subia devagar, logo começou a ver por entre o mato o brilho ocasional do facho que os manos conduziam, e buscou se posicionar para fechar um ângulo em que não viessem a se alvejar mutuamente.

Passados alguns instantes, lobrigou um vulto, na beira do mato, coisa de 50 metros à frente; evidentemente, algum bezerro, pelo porte, lhe disse sua mente racionalizada.

Mas lhes digo, os olhos do bicho brilharam vermelhos no foco da lanterna… apagada? Zeca, com certo retardo, compreendeu que o vulto fugaz cujos olhos vira brilhar jamais fora iluminado pela lanterna que ainda pendia do ombro. Seu couro arrepiou.

De chofre, sacou do revólver; lembrou das “balas de prata” do sogro do irmão; pescou-as do bolso e logo substituiu a munição.

A verdade é que nunca acreditou em assombração, mas, como dizem, na hora que a coisa fica preta, até ateu vira crente.

Agachou na beira do caminho, ocultando-se em uma moita baixa, mas nada mais se movimentou no mato. Logo mais acima, ainda via em relances o facho que os manos passeavam pela margem.

Logo aquela bateria mortal, que só os ouvidos tensos ouvem, foi cedendo, mermando… até que o rapaz caiu em si – mas que merda de ideia! Aquilo era um terneiro, a la pucha. O que sentia era paura do causo de lobisomem do gringo velho.

Meio sestroso, levantou e retomou o caminho com cuidado, palmeando pé por pé para não fazer barulho; pois ainda pretendia deitar na fumaça um capincho, antes de dormir. Ajuntou as munições que derrubara no afã de remuniciar seu revólver, e cuidou de agora ir pela sombra baixa que obscurecia a beira do corredor.

III – Entrevero

Agora os ouvidos atentos de Zeca captavam o fiiiiiuuuumm dos mosquitos; nada passaria despercebido.

Segundo depois soubera, os manos apoitaram no poço para o caíque aquietar, e mesmo abrindo maiores distâncias, essa plataforma mais estável permitiria ao João um tiro certeiro com sua velha carabina Remington. Agora era esperar um pouco e vez por outra dar o facho em alguma sombra suspeita.

Nisso o vulto sombrio novamente deu o ar da graça, mais ou menos no mesmo lugar; já sem receio, o animal saiu ao meio do corredor, meio que dando as costas a Zeca, num passo vacilante. Zeca não quis fazer nada para espantar o bicho, pois sendo bezerro de fato não lhe atrapalhava – e se fizesse bulha espantava o bicho e ainda qualquer caça que por ali andasse.

Só de pachorra, deu um sinal com a lanterna sobre o animal… cuê pucha! Que mala ideia.

Como que animada por uma mola, a besta virou em sua direção, e agora os olhos que brilhavam vermelhos na noite não deixavam dúvida: aquilo não era desse mundo.

A visagem empeçou uns passos de trote… em seguida embalou em um galope tremendo e já a poucos metros, lançou-se para o bote inevitável rumo ao peito do rapazola petrificado.

Enquanto o bicho voava naquela fração de segundo, Zeca deixou-se cair de costas na terra macia da lavoura; e na queda, sentiu o bafo mortal da assombração, que lhe errou o bote por um – nada!

Cinco ou seis metros adiante, a besta aterrou já dando de retorno, e nisso, ergueu-se nas patas traseiras; agora, à luz da lua, bem via o rapaz que se tratava de algum tipo de cachorro ou lobo, com grandes presas à mostra e os olhos iluminados na escuridão. Como que antegozando o sangue, temperado pelo pavor… o monstro passou a uma metamorfose, endireitando-se em pé; abrindo uma braçada formidável e soltando um pavoroso uivo no rumo do céu. A lua às suas costas emoldurava fantasmagoricamente a visagem…

Mas é nessa hora que se mostra por quê o bicho homem é o Rei na Terra. Quando a mente racional se esvai ante o pavor do desconhecido, é que o instinto fala mais alto; Zeca levantou seu revólver a pulso livre e mandou um petardo nos peitos da besta.

Jamais imaginaria o que aconteceu. Dava-se por morto, mas eis que lhe salvaram as “balas de prata” do velho Reimar.

O tranco do revólver foi formidável; dissipada a inusitada fumaceira do disparo, viu que no peito da besta abrira-se um rombo de mais de palmo de largura, emoldurado de um brasido brilhante; e o rombo dava passagem à imagem da lua, que brilhava às costas da assombração. O bicho tombou como uma árvore podre.

Zeca levantou-se e, cortando volta por dentro da plantação, disparou pelo corredor em direção ao pontilhão, gritando pelo nome dos manos. Na desabalada carreira, sentiu que batia um repentino pé-de-vento, uivando na mesma cantilena do lobisomem; lhe enfiava terra pelos olhos e garganta e abafava o gritedo que fazia em sua desabalada carreira.

Logo chegou à ponte, e nisso os manos, que ouviram o disparo e os gritos, enfiaram o caíque na corredeira, descendo a bater lata contra as pedras emergentes da água rasa; a pobre banheira quase não venceu o trecho. Encontraram o Zeca de joelhos no chão, branco, sem fala; quase que catatônico. Com uns tapas, reanimaram-no, mas a fala descoordenada não dava fé do ocorrido.

O rapaz guiou-os pelo corredor, com o Rossi em punho; e logo deram de cara, em meio à ventania, com uma chuva de fagulhas que levantava de um tronco em brasa caído no meio do corredor.

Sabem vocês, quando um tronco de lenha queima quieto, até o fim, sobre o braseiro? Se ninguém lhe bole, a cinza guarda o formado do lenho… isso foi o que viram: um tronco de cinzas, que começava a ser espalhado pelo vento que assobiava. Zeca, novamente, quedou-se de joelhos, com a boca aberta, estupefacto com a cena; e os manos, sem nada entender.

Simplesmente levantou e saiu em direção ao pontilhão, num passo sonâmbulo. Naquele dia, ninguém soube do que aconteceu, e essa história só pôde ser contada depois de muito tempo.